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(Português do Brasil) #7 / 23.02.2021 / Projetos de Lei da quinzena ➜

O que mudou?

Fatos da última quinzena que movimentaram o Direito Penal

(Português do Brasil) Foi publicado o relatório da agência Data Privacy Brasil, intitulado Retrospectiva Tecnoautoritarismo 2020, no qual foram apontadas diversas medidas para aumentar o monitoramento e controle sobre a vida dos cidadãos por parte do governo Federal, Congresso e Judiciário.

O documento define tecnoautoritarismo como o processo de expansão do poder estatal, por meio do uso de tecnologias de comunicação com o objetivo de incrementar as capacidades de vigilância e controle sobre a população, mediante violação de direitos individuais. Assim, o estudo alerta para a proliferação de medidas do governo brasileiro que usam a tecnologia para aumentar a vigilância e controle sobre a população.

O relatório, no entanto, aponta o fenômeno como global, mas destaca que no Brasil o tecnoautoritarismo fica mais saliente por meio de práticas como a centralização de bases de dados pessoais e sua utilização para fins de segurança pública ou atividades de inteligência.

É feita no estudo uma retrospectiva sobre as principais tentativas de violação de dados pessoais para centralização do poder estatal, destacando-se: i) o compartilhamento de dados de servidores sem quebra de sigilo pelo STJ; ii) a edição de decreto Nº 10.279/2020, que permite o compartilhamento de dados pessoais sigilosos pelo governo sem necessidade de autorização expressa dos cidadãos; iii) a criação do Cadastro Base do Cidadão, plataforma governamental capaz de armazenar dados biográficos e biométricos; iv) a tentativa da Abin de obter dados pessoais de todas as pessoas que possuem CNH, o que daria acesso ao nome, filiação, CPF, endereço, telefone, foto e dados dos veículos de 76 milhões de brasileiros (a medida foi barrada pelo STF em julho); v) a elaboração de dossiê pelo Ministério da Justiça para obter dados pessoais de “antifascistas”.

Dessa forma, é evidente como o governo torna nossa privacidade e dados pessoais cada vez mais vulneráveis. Em frente a isso, são necessárias respostas rápidas dedicadas à mitigação dos riscos impostos aos direitos fundamentais dos cidadãos e a efetiva implementação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), a fim de que novas irregularidades não sejam cometidas.

Na prática

Teses relevantes com destaque na jurisprudência

(Português do Brasil) Na quarta-feira que antecedeu ao Carnaval (10/02), a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou o julgamento sobre a extensão da retroatividade do "pacote anticrime" no que tange as alterações no tipo penal do delito de estelionato. Desde a entrada em vigor da novatio legis, em janeiro de 2020, a ação penal referente ao crime passou de pública incondicionada para pública condicionada à representação.

Tal mudança gerou controvérsia entre as turmas julgadoras de direito penal do STJ. A 5ª Turma oferece solução que não afetaria os processos em curso, defendendo que a exigência de representação da vítima só retroage até o oferecimento da denúncia, independentemente do momento da consumação do delito - entendimento que aparece, também, na única decisão colegiada tomada, até o momento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A 6ª Turma, por sua vez, acredita que a norma deverá retroagir até o trânsito em julgado da ação penal. Não obstante, a aplicação de tal entendimento não leva à imediata extinção da punibilidade, sendo que a vítima deveria ser intimada para manifestar o interesse na continuação da persecução penal, no prazo de 30 dias, sob pena de decadência. A 3ª Seção irá dirimir a divergência em breve, três votos já foram proferidos. O processo se encontra no gabinete do Ministro Felix Fischer, que pediu vista dos autos para melhor analisar a matéria.

O relator, Ministro Néfi Cordeiro, ressaltou que não se cuida de questão constitucional, mas que é da competência do STJ decidir se a natureza da norma é material ou processual. Divergindo da decisão proferida no STF, argumentou que o dispositivo teria natureza penal, tendo em vista que afeta o direito do Estado de punir, retroagindo em benefício do réu. Lembrou, ainda, dois outros pontos pertinentes à decisão: o risco ao princípio da isonomia, uma vez que duas pessoas que tenham cometido o crime no mesmo dia podem ter resultados drasticamente diferentes, e a observância do princípio finalístico da lei. Quanto a esse último, aponta que, se a lei exige a representação da vítima, o autor, ao saber dessa possibilidade, pode negociar a reparação do dano, atendendo à pacificação social. De acordo com o ministro, "a vítima é reparada, o autor sente os efeitos da ação estatal por ter que reparar os danos, e a sociedade é atendida, porque não vê suas cadeiras mais lotadas".

Ao votar, os ministros Ribeiro Dantas e Antonio Saldanha Palheiro divergiram do relator. O primeiro afirmou que é papel dos tribunais superiores estabelecer e seguir diretrizes, apontando que foi o que fez o STF ao apreciar a matéria. Inclusive, defendeu que a questão tem também cunho constitucional, haja vista tratar de direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, componentes da segurança jurídica. Lembrou que o Congresso, ao editar a lei, não concluiu tratar-se de matéria de direito material penal e criticou o alcance indeterminado que a retroatividade da norma pode ganhar. Por seu turno, o ministro Antonio Saldanha Palheiro defendeu que a questão da retroatividade da norma penal, ainda que mais benéfica ao réu, deve observar marcos temporais. Assim, não decidiria pelo oferecimento da denúncia, mas argumenta que a denúncia recebida forma e consolida a relação processual.

Atenção!

Temas em debate com relevância para as próximas semanas

(Português do Brasil) No dia 16/02/21, após publicar um vídeo no Youtube atacando frontalmente o Supremo Tribunal Federal e seus 11 Ministros, proferindo diversas ameaças e ofensas à honra, bem como expressamente propagando a adoção de medidas antidemocráticas contra a Corte, defendendo o AI-5 e instigando atos de violência, o Deputado Federal Daniel Silveira (PSL/RJ) teve sua prisão em flagrante delito decretada pelo Min. Alexandre de Moraes. Ao tomar conhecimento do vídeo, pouco após sua publicação, o Ministro do STF decretou de ofício a prisão em flagrante delito do parlamentar, em decisão monocrática proferida no âmbito do Inquérito Policial nº 4781/DF. Segundo decisão, o referido Deputado teria praticado, em tese, diversos crimes contra a Lei de Segurança Nacional – Lei nº 7.170/73 (arts. 17, 18, 22, I e IV, 23, I, II e IV e 26).

É inegável que as gravíssimas falas do Deputado Federal Daniel Silveira afrontam aos princípios democráticos, republicanos e da separação de poderes, além de ofender a honra e representar ameaças à integridade física dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. No entanto, alguns pontos devem ser esclarecidos. Quanto à imunidade parlamentar material, cumpre notar que os atos foram praticados nas redes sociais, com ampla divulgação mundial e, portanto, fora das dependências do Congresso Nacional. Nesses casos, a inviolabilidade prevista no artigo 53, da CF/88 limita-se à exclusão da responsabilidade civil e penal dos congressistas por opiniões, palavras e votos relacionadas ao exercício da atividade parlamentar. As alarmantes falas do Deputado, por não possuírem relação intrínseca com o livre exercício da função parlamentar, afastam a inviolabilidade de suas opiniões. Desse modo, há, ao menos em tese, crime passível de investigação pelo órgão competente.

Por outro lado, há de se tecer algumas críticas no plano constitucional quanto à imunidade formal do parlamentar. Nos termos do artigo 53, §2º, da CF/88, um Deputado Federal só pode ser preso em flagrante delito de crime inafiançável. Os crimes inafiançáveis estão elencados no artigo 5º, incisos XLII, XLIII e XLIV, da CF/88, replicados no art. 323 do CPP. Percebe-se, portanto, que os crimes imputados ao Deputado Federal Daniel Silveira, previstos na Lei de Segurança Nacional, são afiançáveis. No entanto, o Ministro Alexandre de Moraes considerou os delitos inafiançáveis alegando que estariam preenchidos os requisitos para decretação de prisão preventiva, previstos no artigo 312 do CPP e, consequentemente, essa conduta seria insuscetível de fiança, por força do artigo 324, IV, do CPP. Ocorre que parece ter havido uma confusão entre o conceito de “crime inafiançável” e uma situação concreta de não concessão de fiança. O artigo 324, IV, do CPP não traz uma nova hipótese de crime inafiançável, mas tão somente permite a não concessão de fiança para os casos em que, independentemente do delito cometido, estejam presentes os requisitos para decretação de prisão preventiva, considerando o risco à efetividade da persecução penal e a periculosidade do agente. Portanto, os crimes imputados ao parlamentar são afiançáveis, permitindo-se a não concessão de fiança no caso concreto, o que torna a prisão em flagrante ilegal.

Mais do que isso, nosso Código de Processo Penal prevê que toda prisão em flagrante deverá, no prazo máximo de 24 horas, ser convertida em preventiva, relaxada ou concedida a liberdade provisória. No caso, é impossível a conversão do flagrante em prisão preventiva, conforme tese já discutida na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5526/DF, de relatoria do mesmo Ministro Alexandre de Moraes. Por essa razão, a única medida possível seria a liberdade do Deputado – fosse por se tratar de prisão ilegal, fosse por ser passível de liberdade provisória -, algo não promovido na audiência de custódia já realizada, que se limitou a “manter o flagrante”.

Além disso, classificar um vídeo gravado como flagrante abre um precedente perigoso para as garantias e direitos constitucionais. O simples fato de a conduta criminosa estar disponível nas redes sociais não torna, por si só, a consumação do crime permanente. O entendimento de que vídeos ou fotos de condutas criminosas disponíveis na internet são de consumação permanente enquanto perdurar a sua acessibilidade pelos usuários seria permitir um flagrante a qualquer momento, mesmo depois de anos da postagem. Trata-se de uma arbitrariedade enorme, principalmente se considerar que o flagrante pode ser decretado por qualquer pessoa.

Não obstante, logo após o plenário da Corte manter, por unanimidade, a prisão em flagrante, a Procuradoria Geral da República ofereceu denúncia contra o Deputado Federal. No dia seguinte, a Câmara dos Deputados, por maioria de votos, manteve a prisão do Deputado Federal Daniel Silveira, em situação de excepcional prorrogação da flagrância, conforme permite o artigo 53, §2º, da CF/88. A restrição da liberdade do parlamentar ainda será objeto de análise do Supremo Tribunal Federal que poderá aplicar medidas cautelares diversas da prisão ou conceder liberdade provisória. Além das questões penais, o parlamentar também poderá ser responsabilizado politicamente por seus atos, na medida em que foi apresentada representação ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados a fim de apurar se houve quebra de decoro parlamentar, o que pode levar à cassação do mandato.

Feitos esses esclarecimentos, vale ressaltar que as absurdas falas ofensivas à ordem democrática e ao Estado de Direito cometidas pelo parlamentar devem ser devidamente investigadas e processadas criminalmente. No entanto, não se pode admitir violações às normas legais e constitucionais para garantir um julgamento com viés político, sob pena de ofender o próprio Estado Democrático de Direito; os fins não justificam os meios. Inclusive, a reiterada omissão do Congresso Nacional em agir contra parlamentares que atacam a democracia e exaltam atos da Ditadura Militar também contribuem para o esgarçamento do Estado Democrático de Direito, devendo ser duramente reprimidas pelo Conselho de Ética com a cassação do mandato por quebra de decoro parlamentar.