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Nova Lei de Licitações e empresas estatais: o jogo virou?

 

Artigo publicado no Estadão.


A novela sobre o modelo de contratação por empresas estatais ganha mais um capítulo com a edição da Lei 14.133/21, que instituiu um regime geral de licitações e contratos administrativos. Em seu texto, alude-se expressamente à não aplicação da nova lei às empresas estatais, regidas pela Lei 13.303/16. A pergunta que fica é: isso é bom para as estatais?

Se a preocupação sempre foi reservar um regime específico para as estatais, sem dúvida que sim. Ao se restringir às demais entidades da Administração, a nova Lei respeita a autonomia da Lei das Estatais, que continuará a ser utilizada pelas empresas públicas e sociedades de economia mista para licitar e contratar.

Contudo, há uma questão de fundo, que retorna com mais evidência a partir da Lei 14.133/21: a Lei das Estatais jamais previu, de verdade, um regime específico para as licitações e contratos.  Ao fim e ao cabo, por desídia ou incompreensão do seu papel, a Lei das Estatais foi extremamente tímida nesse ponto. O pouco que inovou em relação ao que já existia é insuficiente para a construção de uma pauta própria e consentânea com as necessidades de contratação das Estatais, tal qual demandado pelo art. 173 da Constituição (alterado pela Emenda 19).

Contrariando esse comando constitucional, a efetiva previsão de regras próprias de licitação pelas estatais tardou a se concretizar e, quando finalmente veio à luz, acabou sendo um mero arremedo do Regime Diferenciado das Contratações (RDC), com alguns poucos pontos verdadeiramente novidadeiros – como a hipótese adicional de contratação direta, prevista no art. 28 e a contratação semi-integrada (uma tentativa mal-ajambrada de esvaziar a contratação integrada, já prevista no RDC).

De modo que a regulação licitatória e contratual da Lei das Estatais não é muito distante do RDC. Portanto, o que a Lei das Estatais predica é bastante similar àquilo que já é praticado por uma boa parte dos demais órgãos e entidades da Administração. Afinal, com as suas sucessivas ampliações, o RDC já alcança uma boa parte dos contratos.

Agora, teremos uma lei geral que possui estrutura muito próxima do RDC, regime que será por ela revogado. O que havia de relevante no RDC em termos de desburocratização e eficiência – e que foi incorporado pela Lei das Estatais – consta, agora, do novo regime geral. Inversão de fases, privilégio do processo eletrônico, maior planejamento com abertura à colaboração com o particular, melhoria na gestão contratual, matriz de riscos, e muito mais: todos esses elementos do RDC e da Lei das Estatais estão lá na proposição da nova Lei. Até mesmo a malfadada contratação semi-integrada (o que só comprova que mesmo ideias ruins se perenizam).

No final do dia, portanto, as Estatais ficarão na incômoda situação de observar um diploma que é apenas um precedente defasado do novo regime geral. Situação que traz consigo dois problemas.

O primeiro é a certeza que, agora, há uma completa falta de identidade própria do regime das estatais, eis que a Lei 14.133/21 parte da mesma base que orientou a Lei das Estatais. Isso esvazia de vez a intenção da Constituição de conferir um regime de licitação e contrato próprio das estatais, o que, há de se reconhecer já era algo desenhado pela própria Lei 13.303 ao optar por arremedar o RDC ao invés de constituir um regime específico.

O segundo problema é que, no geral, a nova Lei inova em temas que seriam muito bem aproveitados pelas estatais, mas que poderão, eventualmente, nunca ser por elas utilizados, diante da previsão expressa de inaplicabilidade.

O diálogo competitivo, por exemplo, poderia trazer um avanço tremendo na estruturação de projetos e empreendimentos relevantes para as estatais, especialmente aquelas que dependem de tecnologia avançada ou contratos complexos. Da mesma forma, novas espécies contratuais como a prestação de serviço associado e o contrato de eficiência são opções válidas e que atenderiam a diversas necessidades das estatais. Ao invés de contar com a disciplina mais racional das sanções administrativas e da desconsideração da personalidade jurídica da nova lei, as estatais continuarão guiadas pelas previsões demasiadamente severas – quiçá inconstitucionais – da Lei das Estatais, aumentando a percepção de risco dos seus contratos.

Outro tema interessante será a adaptação dos regulamentos de contratação editados pelas estatais, à luz do permissivo concedido pela Lei 13.303/16. Surpreendentemente, eles se apegam muito mais à Lei 8.666/93 do que ao RDC e à própria Lei das Estatais – como demonstrado em excelente dissertação de Pedro Ivo Peixoto, defendida no Mestrado pela FGV. Ao contrário do que se previa, as próprias empresas optaram por referenciar regras do regime geral, privilegiando-as em relação à disciplina da Lei das Estatais. Com uma nova lei, será necessário revisitar esses regulamentos, pois, do contrário, teremos a esdrúxula situação de perenização de normas já revogadas no legislativo, mas que sobreviverão em diplom.

Na prática, pelos equívocos empreendidos tanto na redação da Lei das Estatais, quanto na edição dos regulamentos pelas empresas, é difícil imaginar que as licitações e contratos das empresas estatais não sofrerão qualquer influência da nova lei.  Portanto, é preciso considerar de que maneira (i) as estatais poderão se aproveitar das inovações trazidas pela Lei 14.133/21 e (ii) como será feita a adequação dos regulamentos atuais, que, muitas vezes, seguem disposições de leis que serão revogadas pela Lei 14.133/21.

Essa proposta traz consigo dois riscos. O primeiro – e mais óbvio –, ao se abrir a porteira para que qualquer dispositivo da Lei 14.133/21 venha a ser aplicado às estatais, eis que não é tarefa fácil filtrar o que tem ou não cabimento. A partir do momento em que se admite a observância de determinados dispositivos, fica difícil controlar a inserção dos demais. O segundo, por sua vez, reside na insegurança jurídica de se incorporar dispositivo de um diploma que, expressamente, nega a sua aplicação às estatais. Licitações e contratos que se valessem de dispositivos da Lei 14.133/21 poderiam ser questionados na sua legalidade, quando feitos por empresas públicas e sociedades de economia mista.

Os inconvenientes existentes, portanto, não me parecem suficientes para proibir a aplicação subsidiária de alguns dispositivos da proposta do novo regime geral de contratação. Seria um contrassenso negar às estatais a utilização de instrumentos que podem se mostrar válidos e mais eficientes, apenas por não constarem expressamente da lei que as rege. Evitar esse anacronismo pode trazer ganhos efetivos às estatais.

É o caso de pensar em opções jurídicas de incorporação dos elementos da nova Lei. Eventualmente, pode-se valer dos próprios Regulamentos das empresas, que poderiam internalizar esses elementos, viabilizando a sua aplicação. Ou, até mesmo, de uma interpretação racional sistemática, de modo a considerar que a referência da Lei nova às estatais é uma deferência ao regime próprio (se é que existe, de fato) das estatais, mantendo a sua independência. Dela não decorre, no entanto, vedação absoluta para que as empresas se valham de elementos específicos.

De tudo isso, uma constatação é clara: ainda estamos longe de consagrar um regime de licitações e contratos próprios das Estatais. Equívocos evidentes na formulação da Lei das Estatais – que a aproximaram demasiadamente do que já existira – agora se tornam explícitos, pois a elas será reservado um modelo de contratação que é similar e defasado em relação ao que virá a ser o novo regime geral.

*Caio de Souza Loureiro é sócio do Cascione Pulino Boulos Advogados, especialista em Infraestrutura