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#4 / 16.12.2020 / Projetos de Lei da quinzena ➜

O que mudou?

Fatos da última quinzena que movimentaram o Direito Penal

O Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou, no dia 26 de novembro, o Habeas Corpus (HC) 154248, pelo qual se busca a declaração da prescrição do crime de injúria racial, em sentença de 2013 que fixou pena pena de um ano de reclusão e 10 dias-multa. A polêmica em torno do julgamento iniciou-se porque, após ter sido a sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), sua defesa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). No curso da tramitação de seu recurso especial, transcorreram mais de quatro anos sem que houvesse o trânsito em julgado da condenação, de modo que, em tese, por ter a pessoa idosa direito à diminuição do prazo prescricional (Código Penal, artigo 115) teria ocorrido a prescrição da pretensão punitiva estatal, razão pela qual a defesa pediu a extinção de sua punibilidade. Entretanto, o recurso foi negado pelo STJ, que entendeu ser imprescritível e inafiançável o crime de injúria racial.

O mesmo pedido foi, então, apresentado ao STF, sob o fundamento que o crime de injúria racial não consistiria em crime de racismo - esse reconhecidamente imprescritível e inafiançável. Foi ouvido o advogado Paulo Roberto Iotti, representante do Movimento Negro Unificado (MNU) e de outras instituições, que argumentou que que o discurso racista se dá principalmente como injúria racial e que não equiparar os crimes retiraria muito da eficácia do repúdio aos discursos racistas manifesto na Constituição Federal.

O procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras, por sua vez, manifestou-se pela procedência do HC, afirmando que a imprescritibilidade alcançaria apenas o crime de racismo, mas não o de injúria racial, e que, no caso concreto, a pretensão punitiva estaria prescrita. Ele argumentou que, no Brasil, o crime de feminicídio e o de estupro prescrevem “e são comportamentos bárbaros e hediondos”, observando que as escolhas do constituinte deveriam ser respeitadas.

O ministro relator, Edson Fachin, votou pelo indeferimento da ordem, afirmando que o crime de injúria racial é uma espécie de racismo, de sorte que é imprescritível. Em seu entendimento, ao aprovar a Lei 12.033/2009, os tipos penais dos dois crimes teriam sido aproximados pelo legislador - inclusive quanto ao prazo da prescrição. Isso, porque a referida lei alterou o parágrafo único do artigo 145 do Código Penal, tornando pública condicionada a ação penal para processar e julgar casos de injúria racial. Nesse sentido, asseverou a possibilidade de se enquadrar a conduta no conceito de discriminação racial previsto em diplomas internacionais e no conceito de racismo já definido pelo STF, no HC 82424.

Dando continuidade ao julgamento, no dia 02 de dezembro, o ministro Nunes Marques, em seu voto, divergiu do ministro Fachin. Para ele, os delitos de racismo e injúria racial tutelam bens jurídicos distintos - respectivamente, a dignidade da pessoa humana e a honra subjetiva. Argumentou que o legislador pretendeu diferenciar as situações, razão pela qual o Poder Judiciário não poderia igualá-las. O ministro defendeu que a imprescritibilidade da injúria racial só poderia ser implementada pelo Poder Legislativo, conforme rito constitucional. No sentido da manifestação de Augusto Aras, lembrou de outros crimes que entende ser tão ou mais graves, mas que não são imprescritíveis, citando feminicídio, estupro e o roubo seguidos de morte e tráfico de pessoa.

A sessão foi suspendida pelo pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes. Portanto, em breve, teremos tese firmada pelo STF sobre a imprescritibilidade (ou não) do crime de injúria racial, podendo também ser traçada uma distinção mais clara entre ao que, juridicamente, se amolda o racismo para fins de imputação criminal.

Na prática

Teses relevantes com destaque na jurisprudência

Na primeira semana de dezembro a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça iniciou o julgamento pela abertura de inquérito para apurar a prática de crimes pelo desembargador Eduardo Almeida Prado Rocha de Siqueira, na ocasião em que ele ofendeu um guarda municipal em Santos enquanto caminhava sem máscara na orla da cidade, então desrespeitando as indicações sanitárias de enfrentamento à Covid-19. O caso ganhou notoriedade após divulgação de vídeo retratando o momento em que o desembargador destratou o guarda municipal, que exigiu o uso da máscara de proteção, e o chamou de analfabeto, enquanto rasga a multa em sua frente.

Até o momento, cinco ministros já se manifestaram nos autos, sendo três favoráveis à instauração do inquérito. O julgamento do caso encontra-se suspenso após pedido de vista da ministra Laurita Vaz.

O relator do caso, o ministro Raul Araújo, indeferiu monocraticamente a abertura do inquérito, entendendo que não há justa causa para instauração do procedimento, pois considerou que o crime de abuso de autoridade refere-se ao caso da autoridade que invoca condição para se eximir de obrigação legal. Essa posição foi reiterada pelo ministro Napoleão Nunes Maia.

Divergiram, no entanto, os ministros Francisco Falcão, Maria Thereza de Assis Moura e Luís Felipe Salomão, os quais entenderam que não caberia ao relator arquivar o pedido de inquérito, conforme o regimento interno do STJ. Os ministros deram razão à tese de acusação, entendendo que o desembargador poderia ter incorrido em abuso de autoridade, infração de medida sanitária e desacato a funcionário público.

Siqueira já responde por processo administrativo disciplinar, que o levou ao afastamento das funções, bem como responde a processo ajuizado pelo guarda municipal que ofendeu na ocasião. Desse modo, o julgamento desse caso será um teste aos limites da aplicação da Lei de Abuso de Autoridade (Lei nº 13.869/2019) e a maioria formada até o momento caminha para a decisão acertada do caso e vai ao encontro do entendimento do CNJ, que já afirmou que o desembargador cometeu abuso de autoridade.

Atenção!

Temas em debate com relevância para as próximas semanas

Tema recorrente nos noticiários foi a contratação de Sérgio Moro, ex-juiz federal e ex-Ministro da Justiça, como sócio-diretor da Alvarez & Marsal, uma consultoria norte-americana, para atuar na área de Disputas e Investigações, desenvolvendo soluções para investigações e questões de compliance. A Alvarez & Marsal é administradora judicial é administradora judicial no processo de recuperação judicial da Odebrecht e faz assessoria financeira na recuperação da Sete Brasil, além de ter sido contratada pela Queiroz Galvão para reestruturação do grupo. Todas as empresas mencionadas foram investigadas e processadas na Operação Lava-Jato e diversos de seus diretores foram condenados pelo próprio Sérgio Moro, à época Juiz Federal da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR e responsável pela Operação, além de terem sofrido graves prejuízos na ordem financeira e social.

A contratação gerou um debate ético no meio jurídico. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil afirmou que deve notificar Moro para que preste esclarecimentos sobre o novo cargo e a relação com a advocacia consultiva, enquanto o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) apresentou requerimento à Procuradoria Geral da República para que se investigue a contratação de Moro pela Alvarez & Marsal. Segundo noticiado e defendido pelo próprio ex-juiz, o contrato com a consultoria inclui uma cláusula prevendo que ele não atue em casos que possam gerar conflitos de interesses, construindo uma espécie de chinese wall; ou seja, uma barreira interna que previne que duas partes conflitantes dentro de uma empresa tenham contato ou influência entre si, garantindo a independência entre setores que possuem informações privilegiadas.

Ocorre que, por óbvio, durante o período em que liderou a Operação Lava-Jato, Moro teve acesso a documentos sigilosos, elementos de prova e investigações em segredo de justiça referentes à empresa Odebrecht e seus diretores, sendo imprescindível notar que a Operação continua ativa. E agora ele estará prestando serviço de consultoria jurídica e sendo remunerado para que oriente a empresa em casos de compliance e investigações, munido de insights e informações privilegiadas que jamais seriam possíveis em outro cenário, vez que desconhecidas do público. A própria nota divulgada pela empresa afirma que a contratação levou em consideração o fato de Moro ser “especialista em liderar investigações de anticorrupção complexas”. O conflito de interesses é, pois, inerente à função exercida, devendo haver transparência na conduta dos envolvidos, que deve ser apurada com mais detalhes.

Para além do caso em específico, o tema levanta pontos de interesse para um sensível tema de compliance. O uso de chinese wall como um recurso de blindagem de informação e responsabilidades é assunto recorrente, mas cuja prática forense ainda pouco se deparou. Tratamos aqui de um exemplo pelo qual o impedimento é bastante claro e seus efeitos para a atividade de consultoria também o são. Com o desenrolar dos fato, acreditamos que o episódio tende a criar novos standards, mais seguros, para que se convencionem parâmetros de chinese wall mais uniformes e efetivamente éticos.