O Senador Renan Calheiros, ao apresentar o relatório final da CPI da Pandemia, propôs o indiciamento de diversas pessoas ligadas diretamente ao Governo Federal, inclusive o indiciamento do próprio Presidente da República, Jair Bolsonaro. Além dos crimes de responsabilidade indicados, foi sugerido o indiciamento por diversos crimes comuns, dentre os quais estão os crimes de homicídio, epidemia, infração de medida sanitária e charlatanismo.
Os crimes de responsabilidade são apurados e julgados pelo Senado Federal, sob a presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), e podem acarretar um impeachment, processo que o Brasil já acompanhou mais de uma vez. Por outro lado, o julgamento de um Presidente da República por crime comum nunca ocorreu no Brasil, gerando, por vezes, dúvidas sobre o seu procedimento.
Crimes comuns abrangem todas as modalidades de infrações penais, inclusive delitos eleitorais, os crimes contra a vida e as próprias contravenções penais. Tais crimes, para permitirem a persecução penal durante o mandato presidencial, devem ter sido cometidos na sua vigência e, ainda, tratar de ilícitos penais praticados no cargo ou cometidos em razão do cargo.
Isso ocorre porque o artigo 86, § 4º, da Constituição Federal, determina que o Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções. Não sendo esse o caso e tratando de crime de ação penal pública, o STF encaminhará o processo ao Procurador-Geral da República, que terá 15 dias para oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento.
Nos crimes comuns, o Presidente da República será processado e julgado diretamente pelo STF, depois que a Câmara dos Deputados declarar procedente a acusação (art. 86, da Constituição Federal). Feito isso, o relator, antes do recebimento ou da rejeição da denúncia ou da queixa, mandará notificar o acusado para oferecer resposta escrita no prazo de 15 dias. Então, a pedido do relator, o Plenário do STF irá deliberar sobre o recebimento ou rejeição.
Se recebida, o relator irá designar dia e hora para o interrogatório, mandando citar o acusado e intimar o Procurador-Geral da República. Nesse caso, o Presidente ficará suspenso de suas funções, pelo prazo máximo de 180 dias, sem prejuízo do regular prosseguimento do processo, conforme artigo 86, da Constituição Federal.
O Presidente da República, nas infrações penais comuns, tem garantia constitucional que impede sua prisão antes de haver sentença condenatória, nos termos § 3º, do mesmo artigo. Entretanto, sendo condenado, perde ele os direitos políticos, o que, como efeito indireto, implica a perda do cargo, como se extrai do artigo 15, inciso III, da Constituição Federal.
Próximos de ano eleitoral e dentro do cenário político do país, não se espera que tenhamos um primeiro caso de persecução de presidente por crime comum, no curso do próprio mandato.
Em julgamento no Supremo Tribunal Federal, debateu-se a constitucionalidade do valor pecuniário imposto em condenações referentes a tráfico de entorpecentes. Conforme hoje vigente, aquele que é condenado na forma da Lei de Drogas (Lei n° 11.343/2006) fica obrigado ao pagamento de valor entre 500 a 1.500 dias-multa; além da pena de reclusão, de cinco a quinze anos.
Pela regra processual, o valor de dias-multa é calculado em uma base que varia de um trigésimo até cinco vezes do salário mínimo vigente à época dos fatos. Cabe ao magistrado, na própria sentença condenatória, fixar os parâmetros de fração do salário mínimo para cada unidade e de quantidade de unidades a ser multiplicada. Transitada em julgado a sentença, o pagamento deverá ser voluntário em até dez dias, sendo, após, considerada dívida ativa da Fazenda Pública.
Para se entender a inconstitucionalidade da pena de multa, conforme questionado pela Defensoria Pública no caso em questão, tomemos como exemplo os crimes enquadrados no Código Penal. Pela disposição geral ali inscrita, a pena pecuniária não poderia ultrapassar o múltiplo máximo de 360 dias-multa – seja em casos de ameaça, seja em casos de latrocínio. Ao tratarmos do tráfico de entorpecentes, o cômputo mínimo legal começa em 500 dias-multa.
Como se percebe, cria-se um enorme vácuo, por exemplo, entre a reprimenda pecuniária contra aquele que comete um latrocínio (roubo seguido de morte) e o que trafica entorpecentes (crime, inclusive, cometido sem violência ou ameaça), favorecendo justamente o que comete o primeiro. Há evidente violação de isonomia, proporcionalidade e adequação enquanto política criminal eficiente.
Resumidamente, por tais razões que a Defensoria Pública suscitou a inconstitucionalidade do dispositivo, recebendo da Suprema Corte a negativa de tal pretensão. Segundo a maioria dos ministros, ainda que maculado por grandes falhas lógicas, não poderia o STF substituir-se no papel do legislador para fixar quantia distinta, ou, ainda, apenas desconsiderar a já fixada e aplicar a regra geral.
De fato, há um problema sério quando o judiciário pretende se substituir de forma incisiva no papel do legislador, ou mesmo de um chefe do executivo. Ocorre que, nesse caso, o que se espera da corte é justamente aparar incongruências inconstitucionais em certas políticas públicas ou em atos decisórios, traduzida na noção já histórica do judicial review.
Ao se rogar na impossibilidade de questionar a matéria - argumentação que não se aplica em diversos outros casos de igual natureza – o que se tem é o engessamento de um debate para o qual qualquer corte constitucional é organizada a realizar, por natureza. Ou seja, se o destinatário legal do controle constitucional diz que nada pode fazer é muito certo que mais ninguém o fará, mantendo em curso clara situação de incongruência.
Foi realizada audiência pública pelo STF, na qual se discutiu com membros do poder público e da sociedade civil as inovações trazidas pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), com destaque à implementação do juiz das garantias.
Este instituto foi uma das mudanças mais debatidas no Pacote Anticrime. Pretendia-se designar um magistrado para atuar como fiscal do controle da legalidade e da garantia dos direitos individuais na fase pré-processual (inquéritos, no geral) e em todas as infrações de menor potencial ofensivo.
Ocorre que o instituto está suspenso desde a vigência da nova lei, devido a liminar concedida pelo ministro Luiz Fux. Assim, aguarda-se a análise do tema pelo plenário da Suprema Corte, o que ocorrerá no final de novembro, quando serão julgadas quatro ações diretas de inconstitucionalidade que questionam o tema.
A maioria dos magistrados e representantes dos tribunais teceram críticas ao juiz das garantias durante a audiência pública, argumentando que a medida acarretaria custos com aumento de pessoal, instalações e implementação de novas tecnologias. Além disso, questionou-se a preservação da autonomia dos juízes durante as investigações criminais.
Há alguma incongruência na crítica. No projeto de implementação do juiz de garantias não há previsão da criação de novos concursos ou despesas extras, apenas realocação dos atuais servidores. No mais, não há qualquer alteração na autonomia dos magistrados, mas tão somente um também magistrado que assumirá uma fase específica da persecução; não é como se houvesse perda qualquer à categoria, ou como se pudesse um juiz ter interesse direto na persecução de um ou outro fato.
Por outro lado, advogados, membros do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública se mostraram favoráveis à implementação da medida. Foi apresentado durante as discussões que ordenamentos similares ao brasileiro - como na Alemanha, Itália e Portugal - possuem figuras similares ao juiz das garantias.
O juiz de garantias seria capaz de promover a descentralização do controle da legalidade da investigação criminal, concentrada atualmente na figura de um único juiz. Outrossim, a medida contribuiria para imparcialidade do julgamento e prestigiaria o modelo de sistema persecutório consagrado pela Constituição Federal.